Rui Bebiano: entrevista (II)

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Voltamos à conversa com Rui Bebiano, a propósito do lançamento do seu livro Outubro. Aproveite, pois não há mais.

 

P. «A Revolução não é um convite para jantar», dizia um famoso revolucionário. Ou seja, e como dizia outro revolucionário, a revolução é como o rio que se liberta e tudo arrasta, sendo por isso quase que fatalmente violenta. Adaptando para aqui a teorização da «guerra justa», será que há uma violência revolucionária justa?

R. O antigo debate sobre a justeza da guerra remete, mais do que para princípios – desde Santo Agostinho que não existe uma solução para o problema que não seja arbitrária –, para condições objectivas de luta por metas e valores. A dicotomia paz-guerra é incompleta e perigosa quando implica a rejeição absoluta da luta de contrários. No caso da «guerra revolucionária», que implica uma revisão da ordem política e moral, a absolutização desses valores é objectivamente impossível. Mas a consideração da violência como «parteira da História», da qual falava Engels, incorpora tanto a sua dimensão regeneradora, enquanto instrumento de destruição de uma ordem injusta, quanto a sua disposição ao serviço do lançamento de uma nova ordem. A grande dificuldade esteve sempre em saber quando parar, ou até se se deveria parar. Os Estados do «socialismo real» nunca deram grande importância à segunda possibilidade. E a esquerda radical rejuvenescida nos anos sessenta colocou sempre no centro da sua intervenção a necessidade da violência. O imaginário de Outubro ajustou-se de forma óptima a estes objectivos. A proposta guevarista de «criar um, dois, três, muitos Vietname» não representava senão o retomar, como uma necessidade, do programa internacionalista do primitivo Outubro. 

P. Em Portugal é possível encontrar interlocutores para um debate sobre Outubro no PCP? Qual é a tua experiência disto? Que tipos de comentários te chegaram ao blogue, quando publicavas o ensaio nos vários posts?

R. Um debate sobre os significados da revolução de Outubro deve ser aberto, descomprometido, e informado, não a afirmação de um credo. Por isso, e porque ele implica conhecimento, treino na confrontação de opiniões, capacidade para discernir a dimensão simbólica da revolução da sua perversão posterior, e, acima de tudo, uma abertura intelectual que rejeite os tiques hegemonizantes, duvido que seja possível com pessoas mais ou menos próximas da actual direcção do PCP ou que a sigam acriticamente. Significativo é o facto de ter recebido, na altura em que estes textos foram publicados na sua primeira versão e o meu blogue pessoal mantinha comentários, muitos vindos de militantes ou de pessoas próximas do PCP que eram invariavelmente agressivos e preconceituosos, sempre com a justificação de que «existem questões mais urgentes» e sugerindo que a simples evocação de determinados temas constituía uma «provocação», uma demonstração de má-fé. Como debater o quer que seja nestes termos?

P. Este livro foi inicialmente publicado, numa versão algo diversa desta, no teu blogue, A Terceira Noite. Isso dá de ti, já há bastantes anos, a imagem de um académico que funciona num círculo mais amplo do que o universitário. Os académicos contudo resistem a esse tipo de funcionamento. Por boas razões – porque acham que a exigência académica se pode perder – e por más razões – porque receiam que a sua autoridade se torne debatível, na medida em que se expõe. Queres pronunciar-te sobre isto?

R. É verdade que existe muitas vezes, no ambiente académico, a falsa noção de que um trabalho consistente e sério é incompatível com interesses, processos e linguagens adaptados a um público que o transcenda. E com uma prática pública da cidadania que integre as dinâmicas contraditórias do conhecimento. Distancio-me frontalmente dessa posição. E não se trata de sugerir uma partição Dr. Jerkill-Mr. Hyde, na qual se muda a máscara consoante a ocasião. Ou de separar o investigador ensimesmado do pedagogo comunicativo. Trata-se de aplicar estratégias e de adaptar linguagens em nome de um conhecimento rigoroso mas participativo. Agora nem todos os universitários terão uma atitude e uma forma de trabalhar moldada a esta possibilidade. Estão no seu direito e não é por isso que o seu trabalho será menos valioso. Mas manter como modelo um hermético homo academicus, que fala apenas da sua «especialidade» e exclusivamente para os seus, parece-me hoje limitativo e suicidário. Numa era de saberes cruzados e de uma diversidade infinita dos processos de comunicação, a defesa como modelar de um saber esssencialmente livresco e endógeno já não faz grande sentido. Além disso, sendo professor e investigador de história recente, vejo como o trabalho de conexão entre diferentes campos e linguagens ainda se torna mais imprescindível. Este livro não é, por isso, um trabalho académico stricto sensu, mas sim um ensaio muito livre, através do qual procurei combinar leituras, alguma reflexão, e uma certa vontade de partilhar perplexidades.

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