Como aqui amplamente noticiámos, no dia 30 de Janeiro passado Margarida Calafate Ribeiro, investigadora do Centro de Estudos Sociais com obra vasta e relevante sobre estudos pós-coloniais, literatura portuguesa e de países de língua portuguesa, guerra colonial e mulheres na guerra, apresentou, na livraria Almedina Estádio em Coimbra, o livro de Isabela Figueiredo. Desse ensaio, publicamos aqui um excerto significativo. Agradecemos à autora a gentil cedência do texto.
O livro de Isabela Figueiredo, Caderno de Memórias Coloniais de que aqui vos venho falar, tem uma forte dimensão pessoal, mas enquadra-se nas análises profundas – que Portugal tem pretendido ignorar – sobre o “nosso colonialismo inocente”(1), pensado por Eduardo Lourenço, ficcionalmente trabalhado por Helder Macedo no romance Partes de África, 1991, e por António Lobo Antunes, em O Esplendor de Portugal, de 1997. Em 1991, Partes de África constituía um livro pioneiro neste aspecto, “inclassificável” na ficção portuguesa de então e, à semelhança, de Caderno, de Isabela Figueiredo era fundado sobre um diálogo póstumo com a figura do pai, transfigurada ora na nação portuguesa, ora na própria imagem do colonialismo português em África. Mais tarde, O Esplendor de Portugal trazia a discussão sobre a questão identitária do colonizador e do ex-colonizador, não tanto a partir da análise das relações desiguais de poder, como em Caderno de Isabela Figueiredo, mas a partir da fracturada relação de pertença/ posse dos sujeitos brancos à terra de Angola outrora colonizada, deixando-os a todos sem lugar. Resumindo todos estes livros mostram, a partir de diferentes posicionamentos, o quanto a descolonização não tinha sido apenas um movimento a sul, que emancipou os países colonizados, mas também um movimento que atingiu radicalmente o continente colonizador que foi a Europa e, no caso sob análise, Portugal. Nesse sentido, esta literatura acusa uma viragem essencial na tomada de consciência pós-colonial do espaço antigamente colonial e das vivências aí havidas como essenciais à nossa identidade de portugueses, de europeus e às nossas identidades individuais. Por isso, a viagem de retorno pós-colonial que estes livros assinalam – de Portugal para África – inverte a história de regressos (2), sobre a qual se foram construíndo os impérios. Nessa medida esta viagem constitui um reconhecimento de que grande parte da história de Portugal se passou fora de Portugal e da Europa, e que para perceber a “fractura colonial” (3), sob a qual todos vivemos, tem de se contar a história das pertenças e vinculações de muitos sujeitos aquelas outras terras outrora parte do império, sob pena de ficarem todos como uma espécie de “refugiados da história” (Marcus, 1997: 17), como as personagens de Esplendor de Portugal e a própria narradora de Caderno, quando se auto-classifica de “desterrada”, ou seja, sem terra e apaixonadamente segue um homem cuja farda indica Moçambique para hipoteticamente lhe dizer que também é de lá, apesar de tudo, contendo neste apesar de tudo, a coincidência impossível de resolver, para narradora, ao longo dos Caderno: é que a sua história individual de pertença àquela terra – “Na terra onde nasci seria sempre a filha do colono” (p. 133) – coincide com a história pública do colonialismo português em África.
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