
É pena que a sua voz não se oiça mais vezes, porque Manuel Resende é uma pessoa com coisas a dizer. Começamos hoje a dar-lhe a palavra, a propósito ainda da edição do seu livro O Mundo Clamoroso, ainda, no ano de 2004. Pensámos ir ouvir de novo o poeta, mas fomos reler a entrevista que nos concedeu à data da edição do livro, e concluímos que é tão notável que não se justifica acrescentar coisas novas. Claro que, para «entrevista breve», como à data se intitulavam na Angelus Novus estas entrevistas que acompanhavam os nossos press releases, a peça tende ao longo… Mas o privilégio de ouvir uma voz como a de Resende, que é a de alguém que faz pensar, num tempo de excessivo pensamento único, justifica a extensão do que propomos aos nossos leitores.
AN O Mundo Clamoroso, ainda é apenas o seu terceiro livro. A que se deve um ritmo de edição tão entrecortado e dilatado no tempo? Falta de inspiração? Horacianismo compositivo? Desamor à letra impressa? Descaso pela república das letras?
MR. Nunca procurei activamente publicar, pelo que tem sido pela simpatia de amigos e leitores atentos (abençoados sejam) que os meus versos chegaram à tipografia. Descaso pela república das letras? Talvez, mas a seguir se verá. Não há qualquer desamor pela letra impressa, pelo contrário, nem horacianismo compositivo consciente (acredite-se ou não, os meus poemas saem em geral praticamente tal qual dos dedos ou da cabeça para o papel; embora, embora não haja nenhum improvisador de jazz que não tenha uma longa prática no corpo).
É certo que a produção não é propriamente gigantesca. Falta de inspiração? Digamos antes que me paralisa o sentimento da precariedade da poesia na nossa sociedade e no nosso tempo, o que implica muitas hesitações e revisitas dos outros poetas, nomeadamente pela via da tradução.
Precariedade da poesia. Se hoje se falar de crise de poesia é muito provável que se apontem como causas fenómenos marginais, absolutamente secundários, ou melhor, derivados: os jovens não lêem, os editores não publicam.
Na relativa calma em que vivemos, estão já esquecidas, ou recalcadas, as dolorosas antinomias que marcaram o nascimento da poesia novecentista e que, ao invés do que se possa pensar, continuam a trabalhar subterraneamente. A manifestação mais imediata dessas antinomias é a convivência da busca de formas de expressão para os novos tempos (o verso livre, por exemplo, como libertação em relação às formas fixas centenárias que correspondiam a sociedades altamente ritualizadas) com a recusa apaixonada desses mesmos novos tempos.
Essa antinomia conjuga-se com outra: a oposição racionalismo/irracionalismo, que corresponde a uma cisão muito característica da idade contemporânea, quebrada que foi a linha directa que ligava o mundo “inferior” (a natureza) ao “superior” (deus) através do homem. Tivemos de tudo neste departamento: a razão razoável (princípio da incerteza, teoria da relatividade) e a razão louca (teorias “científicas” das raças, eugenismo), o irracionalismo saudavelmente louco (Antonin Artaud, por exemplo, salvo o sofrimento do próprio) e o irracionalismo raciocinante (Heiddegger), o que indica que não são os dois pólos que interessam, mas sim a sua interrelação. A primeira manifestação mais trágica desta trágica antinomia foi a primeira guerra mundial, pois a sua barbárie, a sua brutalidade, teve origem nas mais avançadas civilizações, depositárias das grandes conquistas do pensamento e da técnica e das mais requintadas tradições literárias (“infelicidade na civilização”). E, pior do que tudo, essa primeira guerra veio cronologicamente logo pegada a outra época que ousou chamar-se “belle époque”, época inebriada pela fada electricidade, época a que só pareciam opor-se os terroristas anarquistas e as classes perigosas depressa metralhadas pelas forças da ordem.
Vejo subtis paralelos entre esses tempos quase pré-históricos, se medidos pela bitola actual, e os nossos. E encontro a razão disso numa antinomia de base: pregoeira infatigável do indivíduo, a nossa sociedade tudo faz para o fagocitar e castrar nesse colectivo privado que é a empresa, a ponto de apontar, como nec plus ultra do sujeito actuante, o empresário (exactamente aquele que não pode sobreviver sem a sujeição voluntária de todos, e dele próprio, por consequência, pelo que soçobra na burocracia da sociedade anónima, nem mais). Arauta do universal como soma de todos os singulares, entrincheira, por outro lado, cada pessoa no seu círculo estreito de relações, num circo de comunidades (comunidade científica, comunidade techno, comunidade homossexual, comunidade internacional, que são alguns Estados privilegiados, comunidade porra).
Embora não pareça, a poesia de hoje está precisamente no centro do furacão, e isto por uma razão muito simples: as condições de produção dos tempos modernos (bem, não fujamos às palavras: capitalistas) exigem a organização industrial privada, a qual é mais consentânea com formas de arte como o cinema, o vídeo, o disco, do que com esse artesanato que é a poesia, isto é, é mais consentânea com o copyright (propriedade intelectual das empresas) do que com o direito de autor (propriedade intelectual do Luiz Francisco Rebello). Os grandes poetas tardo oitocentistas não se enganavam ao ver no jornal e nos jornalistas os seus inimigos e ao contrapor-lhes o livro (ora aí está uma boa interpretação para Mallarmé, escusam de agradecer).
E contudo, ela move-se. Digo isto porque: apesar de toda a enorme concentração de abstracções materiais que se propõem ao nosso consumo, perdão, ao consumo de quem pode, todas as máquinas calculadas pela mecânica racional, todos os computadores calculados pela electrónica e pela lógica, todos os lasers, todos os robots, tudo o que quiserem, todas as multinacionais, apesar disso tudo, o ser humano não pode sobreviver mais do que o permite a rotação anual do sol. O seu ciclo de vida inscreve-se necessariamente no ciclo, digamos, natural, precisa, para viver, de que a mais ínfima das plantas tenha tempo de crescer e de morrer e de dar o seu podre às outras que vierem.
Está bem, está bem. E que tem isto a ver com a poesia? Tudo. Afirmação por excelência do indivíduo, isto é, do contacto mais nu e simples possível de cada um com o mundo (sim, através da palavra, artefacto por essência social, mas isso não esqueci, descansem, e trata-se, aliás, de um postulado de base), ela obriga-nos (se quisermos ser coerentes e quisermos sobreviver, simplesmente) a questionar esta corrida desenfreada de todos contra todos.
Tudo isto é telegráfico, reconheço-o, mas trata-se de uma “entrevista breve”. Como o que nós escrevemos é sempre apenas uma ponta do iceberg, permita-se que passe já para uma vinheta tirada da actualidade: o direito, que reivindica para si a glória de ter ultrapassado a lei da força pela força da lei, cada vez mais se impõe pela lei da força. Não se trata apenas das guerras americanas contra o chamado terrorismo (“might is right”, ora nem mais), trata-se também de querer à viva força, é o caso de o dizer, substituir a luta política pela luta judicial. Os advogados em vez dos profetas, ou dos oradores da ágora? Os estipendiados (esperemos que paguem o IRS), em vez dos simples militantes amadores? Razão tinha o Shakespeare: “morte aos advogados”. “Já”, acrescento eu, salvaguardando, claro, as pessoas singulares.
A isto tudo, oponho (em nome de quê ou quem? de mim, perdoem-me a insolência) a luta por revigorar a palavra, que para mim é igual à luta pela palavra de quem a não tem, é igual a procurar uma nova aliança com a natureza, é igual a andar mais devagar, a uma revolução que reivindique também o lugar do indivíduo, se fazem favor (e poderia citar Marx, mas o Pacheco Pereira não deixa e a um maoísta não se pode resistir). Poderia acrescentar imensos pontos a este caderno reivindicativo, mas prefiro deixar isso aos outros meus semelhantes, e sublinho “meus”.

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