O último livro de Abel Barros Baptista na Angelus Novus foi o volume de ensaios De Espécie Complicada. O autor foi membro do júri que decidiu atribuir o Prémio Camões a Manuel António Pina e deu, na ocasião da reunião no Rio de Janeiro, uma entrevista ao jornal Globo, que acaba de ser publicada. Transcrevemos a entrevista, com a devida vénia.
Professor de literatura brasileira na Universidade Nova de Lisboa, o crítico português Abel Barros Baptista publicou estudos sobre autores como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, mas é mais conhecido entre nós por dois livros que estão entre os mais importantes lançados nas últimas décadas sobre Machado de Assis. Em “Autobibliografias” e “A formação do nome”, ambos publicados aqui pela Editora da Unicamp, Baptista constrói interpretações originais da obra do escritor brasileiro, dispensando a vinculação estreita entre a ficção de Machado e a história brasileira que caracteriza boa parte da melhor crítica sobre o autor escrita no Brasil. Baptista esteve no Rio em maio para participar da reunião do júri do Prêmio Camões que laureou o poeta português Manuel António Pina. Nesta entrevista ao GLOBO, ele diz que sua condição de estrangeiro diante dos autores que estuda não deve ser pensada em termos de vinculação nacional, mas antes em relação à experiência de estranhamento que define a própria literatura.
Como crítico português que dá aulas de literatura brasileira, o senhor tem se dedicado particularmente a mostrar que o interesse da obra de Machado de Assis não precisa ser necessariamente vinculado ao estudo da sociedade brasileira da época em que ele escreveu. Essa orientação, divergente da corrente predominante na crítica brasileira, dá expressão literal a uma ideia já mencionada pelo senhor em textos e entrevistas: a de que, diante de uma obra literária, o leitor se torna sempre um estrangeiro. O que o senhor quer dizer com essa observação?
ABEL BARROS BAPTISTA: Minha ideia é que os únicos livros que vale a pena ler são aqueles que nos tornam estrangeiros. Estamos perante eles como uma pessoa está diante de uma língua que não domina. O trabalho que se tem que fazer, como leitor, é aprender a admirar aquela língua. Metaforicamente, mas não só. Os grandes autores escrevem livros que são escolas, que nos dão a impressão de que sabemos tanto quanto eles, e que precisamos saber o mesmo que eles sabem para entender aquilo. Mas para que isso aconteça tem que haver um momento do que os formalistas chamam de estranhamento. Tem que haver um momento em que o leitor sente que está fora daquilo, que aquilo não é dele. A pior coisa que pode acontecer na literatura, e que é um traço marcante da banalização, é o leitor sentir-se em casa. O que se chama literatura comercial é a que dá ao leitor uma apreciação do tipo “aqui não há nada de estranho, vais ter exatamente o que queres”. A literatura eu creio que se define, ao contrário, por essa posição de estrangeiro, mas ao mesmo tempo por haver, para essa posição, uma correspondente hospitalidade incondicional. O livro está à espera, é anfitrião. Não nos impõe condições. Aceita qualquer um, imbecil ou não. Aquilo que define a literatura é uma utopia, uma ideia generosa de partilha entre as diferentes pessoas do mundo que leem livros. A ideia de humanidades é a ideia de fazer amigos através dos livros. Foi o que me aconteceu no Brasil. Nunca pus os pés no Brasil antes de publicar os livros sobre Machado. Hoje tenho vários amigos que eu fiz através dos livros que publiquei. Talvez tenha contribuído para mostrar que muito do que se faz no Brasil sobre Machado de Assis está dominado por uma ideia liquidadora, a de que temos que primeiro conhecer o Brasil para depois conhecer Machado de Assis. Minha experiência de leitor prova exatamente o contrário.
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