
O primeiro livro de Rui Bebiano na Angelus Novus, Folhas Voláteis (2001), apresenta como subtítulo «Crónicas Digitais». De facto, o livro assinala uma data importante na história da net em Portugal e, mais latamente, na da nossa cultura digital, pois é uma das primeiras obras em papel que colige textos – neste caso, «crónicas» – escritos para o suporte digital. Bebiano foi um dos pioneiros do cibermundo em Portugal e em português (no início, com fortes ligações ao activismo galego), em sites e publicações como Lugares (primeiro guia de links na Net portuguesa) – 1994-1996 -, Non! cultura e intervenção (primeiro e-zine português) – 1996-2002 – Colonial (primeiro site português sobre a Guerra Colonial) – 1999-2000 -, o blog colectivo Sous les Pavés, la Plage! – 2004-5 -, o blog colectivo A Estrada – 2005-6 -, o blog A Noite – 2006-7, antes do actual A Terceira Noite e colaboração em vários projectos colectivos recentes.
Desse livro inicial na Angelus Novus, recuperamos hoje um dos melhores textos de Rui Bebiano nesse volume, uma crónica em que o autor discute exactamente as alterações induzidas nos regimes de leitura pelas revoluções teconológicas do nosso tempo. Que agora pode ler, com mais algumas dezenas de outros textos, a preço ainda mais módico.
A chuva, os ácaros e a leitura
Chove muito nos invernos lusitanos. Não tanto como naquela cidade da Noruega, na qual, anunciava o velho manual de geografia, «até os cavalos se espantam» quando vislumbram humano sem guarda-chuva. Mas chove o suficiente para nos inibirmos de passar as tardes de óculos escuros, beberricando imperiais em esplanadas luminosas e simplesmente vendo as vistas. Nas alturas húmidas refugiamo-nos sim, como acontece nas regiões assumidamente borrascosas, em desportos íntimos, em bricabraques domésticos, em vícios 100% incompatíveis com a água que ensopa e o vento malvado que gela e despenteia.
Existia em tempos quem, por essa época de interiores, ocupasse as horas mortas, se tinha afazer, condição ou desculpa que concedessem a elegância, e pachorra para forma tão monótona de passar o tempo, a respirar a indolência das salas aquecidas. Sócios, reais ou imaginários, de um daqueles clubes de vago modelo britânico, no qual a chávena de chá combinava com o jornal entalado entre ripas, as conversas aconteciam em tom amável, o indefectível Jenkins se travestisse de um polido senhor Antunes, a figura da soberana coroada tivesse os contornos – eram as vésperas de um Abril por vir – de um velho almirante retratado a preto e branco. Aí, entre as mãos do brídege, frases sussurradas e bolinhos de manteiga, existia quem acompanhasse o movimento dos ponteiros com a leitura, encadernada e pacífica, de volumes dos mais insuspeitos clássicos. Daqueles que as universidades igualmente clássicas ensinavam com incontido orgulho, as famílias honestas exibiam sem preconceito às visitas, e a censura achava que não perturbavam a vida simples de um povo simples.
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