
Daniel Melo é historiador e investigador auxiliar no Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Doutorado em História Contemporânea, tem obra vasta sobre o período, destacando-se os livros Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958) e A Leitura Pública no Portugal Contemporâneo (1926-1987), ambos galardoados com o Prémio de História Contemporânea Victor de Sá. Co-organizou os livros A Globalização no Divã (2008) e Construção da Nação e Associativismo na Emigração Portuguesa (2009). O seu livro mais recente é A Leitura Pública na I República (2010).
Sobre o livro A Cultura Popular no Estado Novo, que integra a nossa colecção Biblioteca Mínima de História, dirigida por Rui Bebiano, ouvimos o autor. Esta entrevista abre uma série de entrevistas a autores de volumes publicados nas várias séries da Biblioteca Mínima.
P. A sua análise daquilo a que chama «a imposição à sociedade portuguesa de um modelo nacionalista, ruralista e tradicionalista de cultura popular» (p. 121) dá a ver, por um lado, a identificação do próprio Salazar com a matriz rural desse «popular» e, por outro, «o logro de sustentar a especificidade de uma cultura popular concebida autarcicamente e de modo pretensamente abstracto» (id.). O Estado Novo, como diz, centrou os seus esforços de produção de uma cultura popular no elemento rural, ao qual se deveriam as tradições que nos distinguem como Nação. Mas se, como nota, não há cultura popular realmente específica, uma vez que as características genéricas da sociabilidade humana e do processo civilizacional são comuns a todas as culturas, isso significa que não é possível fundar e legitimar a Nação sobre a «cultura popular». Mais latamente, isto significa que uma Nação não se legitima por uma forma qualquer de cultura, seja ela popular ou não?
R. Não necessariamente, basta constatar como os regimes nacionalistas o souberam fazer, incluindo o Estado Novo português. Essa cultura popular oficialmente estimulada, sustentada, foi, de facto, uma ‘almofada’ social, na medida em que funcionava como contraponto às alterações tecnológicas, económicas, sociais (e culturais) em curso (ainda que estas decorressem de modo mais lento do que nos países mais industrializados e/ou abertos). Um conforto existencial face aos receios que a mudança pode compreensivelmente despertar. Mas, de par, um pilar ideológico, guia da acção e inculcador de certos valores, práticas, vivências e comportamentos, fortemente unidimensionais.
Agora, se falarmos em países democráticos, parece-me que a própria concepção de democracia – assente no pluralismo, na cidadania, no desenvolvimento, etc. –, implica a saída do Estado do espaço de determinação ou imposição duma cultura oficial, ainda que desenvolva (e deva desenvolver) uma política cultural sólida. O que importa aqui é criar condições para a afirmação do pluralismo, para a autoformação e emancipação dos cidadãos e para a criação duma esfera pública diversificada, crítica, exigente.
Digamos que, a existir uma cultura nacional, ela resultará necessariamente das interacções entre Estado, mercado e sociedade civil, e advirá em boa medida da interdependência entre fontes mais localizadas, ‘comunitárias’ (à escala local, regional, nacional, das diásporas) e mais universais, cosmopolitas. Donde, uma cultura essencialmente cívica, assente nos valores da res publica e da democracia integral, a um tempo política, económica, social e cultural. Não sei se fui claro, mas o que atrás disse não invalida que existam especificidades culturais, singularidades próprias de cada país, para falarmos num território concreto. Contudo, isso não chega para definir a cultura de cada país. Seja hoje, seja num passado recente. Porque a globalização cultural, civilizacional, etc., ou seja, a interdependência de culturas, não começou hoje (ou recentemente), foi acontecendo ao longo de séculos.
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