Ana Luísa Amaral sobre o «Caderno de Memórias Coloniais»

Como aqui informámos, o Caderno de Memórias Coloniais foi apresentado no Porto (mais propriamente, na FNAC do NorteShopping), no passado dia 6, por Ana Luísa Amaral. Do texto que a apresentadora leu na altura, publicamos um excerto significativo. Agradecemos a Ana Luísa Amaral a gentil cedência do texto.

Elogiado por muitos, atacado por quem continua a manter do período colonial uma visão paradisíaca, Caderno de Memórias Coloniais encontrou um extraordinário destaque junto da crítica, indo já na sua terceira edição e tendo sido inclusivamente, dizem-me, alvo de proposta para adaptação cinematográfica. “Um livro que faltava”, “um registo fundamental”, “um livro de amor, de desabafo e terapêutico”, “um livro resultante de um acto de coragem”, “um livro incómodo, merecedor (…) da nossa atenção” – depois de tão larga quantidade de leituras, que dizer deste livro que seja novo e lhe faça justiça?

Os 43 textos que o compõem (e que são seguidos por uma “adenda”, com “posts, entrevistas & mais ainda”) tematizam, como o título indica, memórias coloniais e foram compilados muitos deles a partir de um blogue criado pela sua autora em 2005 (Mundo Perfeito, agora chamado Novo Mundo). Coisa de somenos, pois (pode parecer): apontamentos de blogue, notas soltas… Desiluda-se desde já quem assim pense, porque o livro é notável e comove, e esse efeito de comoção tem tanto a ver com os eventos nele evocados como com a escrita que os serve – madura, a um tempo firme e frágil, ensaiando simultaneamente uma voz de mulher e um olhar que oscila entre a infância e a idade adulta, uma escrita que sabe que tudo escapa por entre as memórias e a linguagem. A ilustrar esses textos encontramos ainda algumas fotografias, provas de uma materialidade que a palavra provavelmente com maior dificuldade suporta. “Fatia de espaço e de tempo”, como a dizia Susan Sontag (22), a imagem fotográfica tem, por “sabedoria última” dizer «Há a superfície. Agora pensem – ou sinta, intuam – o que está para além dela, como deve ser a realidade se parecer assim»” (23). Por isso, “ tudo o que o programa de realismo da fotografia sugere é a crença de que a realidade está escondida (120)”.

Começo, pois, por uma fotografia: a que se encontra na p. 26 e em que se vê a autora do Caderno a bordo de um barquinho infantil no lago de um parque, vestida de varina da Nazaré, óbvia exportação para um espaço visto como o Portugal de Além-Mar de uma tradicional portugalidade. Não falta lenço nem pompom, nem brincos, a modelo deverá ter uns 5 anos e posa, entre o sedutor e o determinado, fitando directamente a objectiva. Na página ao lado, a autora escreve “Quem, numa manhã qualquer, olhou sem filtro, sem defesa ou ataque, os olhos dos negros, enquanto furavam as paredes nuas dos brancos, não esquece esse silêncio, esse frio fervente de ódio e miséria suja, dependência e submissão, sobrevivência e conspurcação”, para depois concluir “Não havia olhos inocentes” (27-28). E, desta maneira, a fotografia é levada a adquirir um novo sentido, o de uma fatia, única e singular de espaço-tempo, literalmente cortada ao vivo” (Dubois, 1994, p. 161), pequena lâmina de passado, subtraída de um espaço pleno, conservando um só plano e rejeitando a ambivalência do possível.

Retenho este termo: ambivalência. Poderia dizer “convivência de opostos”, ou ainda “estar-entre”, ou, emprestando-me de uma palavra usada várias vezes por Isabela Figueiredo, “desenraizamento”. Quero com isto falar de dois tópicos aparentemente separáveis, mas ligados, que atravessam este livro: o corpo e o exílio. Penso na teórica feminista Rosi Braidotti e na sua re-interpretação do exilado enquanto nómada. No sujeito nómada, o que está em causa não é a desterritorialização, ou o deslocamento per se, mas a liberdade discursiva em relação às narrativas dominantes, porque é um sujeito em devir, que se vai tornando – e eu saliento aqui a pulverização e a recusa de identidades estáveis. Recusa imposta, dir-me-á a autora. Liberdade que não é escolha, acrescentará. Mas o que é certo é que as narrativas que encontramos neste textos resistem efectivamente às que tínhamos como hegemónicas e que, pelo silêncio, ora galopavam sobre quatro décadas de História, ora ficavam presas a imagens antigas de quatro décadas.

Aqui, é como se o mapa do corpo coincidisse com o mapa do império. Cito: “A minha terra havia de ser uma história, uma língua, uma ideia miscigenada de qualquer coisa de cultura e memória, um não pertencer a nada nem a ninguém por muito tempo, e ao mesmo tempo poder ser tudo, e de todos, se me quisessem, para que merecesse ser amada; (…). O meu corpo tornou-se devagar a minha terra. Materializei-me nela, e todos os dias voltava ao anoitecer à minha terra, e dela saía de manhã” (87). É Eduardo Pitta, também um retornado de Moçambique, que fala das “[f]eridas antigas hipotecadas / ao futuro” – e o que nestes textos se detecta é a capacidade de, no “atravessar” “paredes e penumbras”, se “sentar à porta do medo”, numa contínua condição de estar-no-limiar. Por isso é possível falar da convivência dos contrários, em que os dois territórios, os de corpo e de apátrida, ou de exilada, podem afinal ser vistos como um único: o do corpo exilado, em que só a palavra permite mapear (e mesmo assim, de uma forma incompleta), numa multiplicidade real e simbólica que cobre vários espaços, o império da solidão, da terra, da vergonha, do ódio e do amor.

No reconhecimento da dificuldade da linguagem no testemunho do inumano, este é também um livro de coragem. Que recorda, ao lado do racismo, dos morticínios, dos animais abandonados, “únicos inocentes em tão complexo jogo de poder” (86), a ponte aérea a que Portugal assistiu nos meses a seguir ao 25 de Abril, com o incómodo de um país que resistia a confrontar-se com os seus próprios fantasmas e pesadelos reais. Que ainda hoje resiste a inscrever-se, nessa imagem que de si construiu como a de um povo cuja colonização foi branda, ou pelo menos mais branda do que a dos outros povos. E que, ao mesmo tempo, igualmente escamoteou o sofrimento de quem foi desenraizado. Além das várias descrições sobre o mundo abandonado pelos retornados e a sua violenta adaptação a um novo mundo, saliento um apontamento no texto 36, quando a narradora diz que cedo se habituou “a ser alvo de troça ou de ridículo (…) por se vestir de vermelho ou de lilás.” (119). E este apontamento, tão curto quanto eloquente, fala-me tanto, ou talvez mais, sobre a brutal clivagem entre os trópicos e o espaço atlântico como as descrições sobre os céus de Moçambique e a terra vermelha e o seu contraste com o cinzento e a chuva da Metrópole. É de roupa que se fala, de calças “amarelas de tecido ‘la finesse’”, de um “casaco de lã verde-alface”. Mas é também de cor. E esta roupa, como a cor (da pele ou da paisagem) presente ao longo do livro, adquire a força simbólica do indivíduo esmagado pelo social, pela ideologia e pela discriminação. Porque esta roupa envolve um corpo. “O meu corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas as guerras.” (127) – a guerra colonial, protagonizada na figura de um primo comando, que acaba suicidando-se em Xabregas, após ter “queimado todas as veias, assaltado ourivesarias na Almirante Reis e assassinado negros a tiro, pelas costas, na Damaia” (67). Os que sucumbem.

Ana Luísa Amaral

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