Vítor Aguiar e Silva em entrevista sobre «Jorge de Sena e Camões»

Vítor Aguiar e Silva estudou e ensinou na Universidade de Coimbra, onde foi professor catedrático da Faculdade de Letras. Em 1989 transferiu-se para a Universidade do Minho onde foi catedrático do Instituto de Letras e Ciências Humanas, fundou e dirigiu o Centro de Estudos Humanísticos e a revista Diacrítica e desempenhou as funções de vice-reitor. Tem-se dedicado especialmente ao estudo da Teoria da Literatura, domínio em que a relevância do seu ensino e da sua investigação é nacional e internacionalmente reconhecida, e da Literatura Portuguesa do Maneirismo, do Barroco e do Modernismo. Os estudos camonianos têm constituído objecto constante da sua actividade de investigador. Refiram-se os seus dois volumes de estudos camonianos: Camões: Labirintos e Fascínios (prémio de ensaio da Associação Portuguesa de Críticos Literários e da Associação Portuguesa de Escritores); A Lira Dourada e a Tuba Canora (Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus). A Universidade de Évora atribuiu-lhe o Prémio Vergílio Ferreira de 2002. Em 2007 foi-lhe atribuído o Prémio Vida Literária, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores e pela Caixa Geral de Depósitos, o mais alto galardão literário existente em Portugal. Ouvimos Vítor Aguiar e Silva sobre o seu recente Jorge de Sena e Camões. Trinta Anos de Amor e Melancolia, obra editada em parceria com a DST.

P. Por que motivos escolheu Jorge de Sena, de entre uma plêiade tão vasta de camonistas, para objecto de um estudo tão desenvolvido? Existem, no século XX, outros camonistas que lhe merecessem uma atenção tão empenhada como a que votou a Sena? Qual é, digamos, o «valor acrescentado» de Sena, na sua perspectiva?

R. As razões da escolha de Jorge de Sena «de entre uma plêiade tão vasta de camonistas» para objecto do meu estudo têm um fundamento racional e uma raiz afectiva e autobiográfica. Sena foi o camonista do século XX que mais ampla e aprofundadamente estudou Camões, desde o plano filológico, histórico-literário e comparatista até ao plano hermenêutico e filosófico–doutrinário, com uma preparação teórica e metodológica de rigoroso scholar. A raiz afectiva e autobiográfica tem a ver com a minha memória universitária: quando, na década de sessenta do século XX, elaborei a minha tese de doutoramento, foi com Sena que aprendi a «ler» Camões e a poesia portuguesa do seu tempo sob o signo do Maneirismo, rompendo com tradições e esquemas historiográfico-literários dominantes na Universidade portuguesa (Camões como símbolo maior do «Classicismo renascentista» é não só a expressão da visão histórica do Renascimento forjada por Burckhardt e por Michelet como também um dos grandes mitos do nacionalismo lusitano).

Um camonista do século XX que me desperta muito interesse, por diversas razões, é António José Saraiva.

O «valor acrescentado» de Sena consiste em ter sido um poeta profundamente moderno vindo do Unicórnio e dos Cadernos de Poesia, que soube magistralmente fazer a defesa e a ilustração da filologia e da «erudição» como conhecimentos vivos e imprescindíveis à racionalidade científica dos estudos literários. Tirou-lhes o «verdete»… Comparo-o, sob este ponto de vista, a Dámaso Alonso.

P. O seu Sena neste livro é o camonista, mas não inteiramente o «camoniano», já que esse teria de incluir o poeta – dos sonetos de As Evidências, de vários outros poemas onde o rastro camoniano é notório -, o contista, etc. Tratando-se de uma decisão de corpus e de método, foi-lhe ela evidente ou difícil?

R. O Sena que neste livro estudo é efectivamente o «camonista», o scholar camonista, e não o poeta ou o narrador cuja obra apresenta uma multiforme relação intertextual com a obra camoniana e para cujo conhecimento Jorge Fazenda Lourenço deu um valioso contributo na sua dissertação doutoral, A Poesia de Jorge de Sena. Mais recentemente, Margarida Braga Neves, num excelente ensaio publicado na revista Relâmpago (n.º 21), analisou também os sulcos e pegadas de Camões na obra literária de Sena. O subtítulo do meu livro assinala aquilo mesmo pela sua articulação peritextual com os dois volumes Trinta Anos de Camões. O corpus textual de Jorge de Sena camonista é tão vasto e tão rico que a opção não me originou dúvidas. Um dos meus objectivos, aliás, foi demonstrar a sólida, coerente e moderna formação de teoria e metodologia literárias do Sena camonista, que alguns têm pretendido circunscrever redutoramente aos cálculos estatísticos (nos quais há muita informação relevante). O capítulo IV do meu livro é uma contribuição para a história do pensamento literário em Portugal, domínio de investigação que, com raras excepções, tem sido votado ao abandono. A história das disciplinas científicas não é um supérfluo exercício de antiquário. É indispensável para se compreender a dinâmica dessas disciplinas e para se prospectivarem futuros desenvolvimentos.

P. Explica, por várias vezes, o seu livro como um “tributo de amor” a Portugal, nesse amor se unindo, por essa via, a Jorge de Sena e ao próprio Camões. A reflexão empenhada sobre Portugal, na forma de um tantas vezes amargo «tributo de amor», será um tropo inevitável do camonismo? Como explica, da sua parte, a substância e a pertinência desse tributo?

 R. Se não tresleio, nunca escrevi que este meu livro é um «tributo de amor» a Portugal. Escrevi – o que não é bem o mesmo – que, para além de outras coisas mais, o livro «é também um estudo indissociável do sentimento de amor a Portugal e do correlato sentimento de melancolia irresgatável que Camões e Sena viveram e exprimiram superlativa e agonicamente e que eu, leitor e estudioso de ambos, revivi meditativa e interrogadoramente na minha inteligência e na minha sensibilidade». O amor a Portugal e a mágoa, a dor e a melancolia incurável de ter visto a luz «neste país perdido», é um topos camoniano que percorre como um veneno, como uma maldição e às vezes como uma utopia regeneradora e uma visão futurante a literatura portuguesa, desde Garrett e sobretudo desde o tempo finissecular oitocentista até Pessoa, Torga, Manuel Alegre, Ruy Belo e outros autores, e que eu vivo dramaticamente. Um topos camoniano que se converte irremediavelmente num tropo do camonismo. Felizes, neste país cronicamente pobre, endividado, injusto, em estado permanente de «ruína cultural», como disse Pessoa, só alguns gestores e alguns economistas…

P. De entre os contributos mais impressivos de Jorge de Sena para a crítica camoniana, destaca-se a aplicação do conceito de Maneirismo à poesia lírica do poeta. Tendo, por sua vez, alargado e consolidado tão significativamente esse mesmo contributo, esperar-se-ia que, ao ocupar-se do camonismo de Sena, se tivesse referido ao assunto de forma mais desenvolvida. Para além das razões de circunstância que evoca no Epílogo, existem outros motivos para o não ter feito? Como vê hoje a «questão» do Maneirismo, em tempos tão controversa e tão separadora de águas nos domínios da periodização literária e artística?

R. Adaptando à matéria um conhecido adágio latino, direi que habent sua fata problemae… Na investigação literária de meados do século XX, fruíram de grande visibilidade e estiveram na moda, tanto na estética como na história da arte e na história da literatura, o Maneirismo e o Barroco. Foram publicados, em monografias, actas de congressos, artigos de revistas especializadas, estudos fundamentais que transformaram profundamente a cartografia dos fenómenos artísticos e literários dos séculos XVI e XVII. Em língua portuguesa, relativamente ao Maneirismo, Jorge de Sena teve uma relevância inaugural e cimeira. Eu percorri, julgo que aprofundei e tornei mais sólido o caminho que ele abrira. E depois de mim, vieram os contributos importantes de Aníbal de Castro, Vítor Serrão, Cardoso Bernardes, Rita Marnoto, Maria do Céu Fraga e Isabel Almeida. Num conspecto europeu, diria que o livro Le Maniérisme de Claude-Gilbert Dubois (Paris, 1979) encerra o ciclo da descoberta do Maneirismo.

Não retomei esta problemática no livro para não me repetir, tendo em conta o que escrevera já na minha tese de doutoramento e na minha Teoria da Literatura. Mas não escondo que existiu outra razão: a leitura da Origem do Drama Trágico Alemão de Walter Benjamin, obra que eu não conhecia quando elaborei a tese de doutoramento, a leitura de algumas páginas de Christine Buci-Glucksmann e de outros trabalhos publicados nos últimos anos obrigar-me-iam a escrever um longo ensaio – talvez venha ainda a escrevê-lo… – que não seria compaginável com a lógica e com a economia deste livro. Num extenso ensaio de publicação próxima, digo «adeus ao Barroco». Mas não disse adeus ao Maneirismo…

P. Encontra discípulos directos de Jorge de Sena no camonismo actual? Se não, como explica que o magistério seniano não tenha produzido um rasto mais claro e duradouro?

R. Durante o seu magistério na Universidade de Wisconsin e na Universidade de Santa Barbara, Jorge de Sena orientou diversos alunos de pós-graduação, alguns dos quais vieram a ter posição relevante na camonística contemporânea. Menciono como exemplos António Cirurgião e K. David Jackson. No sentido estrito da expressão, não existirá propriamente uma «escola seniana» de estudos camonistas, porque a excepcional energia criativa de Sena e o fulgor das suas análises hermenêuticas dificilmente eram codificáveis em protocolos discipularmente transmissíveis. Aliás, Sena detestava os «decalques» universitários, como revelou, em palavras ácidas e porventura injustas, a propósito de Carlos Bousoño enquanto discípulo de Dámaso Alonso. Mas há um «étimo espiritual» de Sena que marcou profundamente todos os seus alunos, como acontece com todos os grandes mestres. O mestre não ensina a repetir, a glosar, a imitar: ensina a ser livre na procura rigorosa e porfiada da verdade possível.

P. Como avalia a investigação camoniana nos nossos dias? Quais os principais desafios e dificuldades que se colocam a quem hoje se dispõe a estudar a obra de Luís de Camões?

R. Penso que a camonística conhece nos nossos dias um tempo verdadeiramente áureo em Portugal. Numa confluência intergeracional admirável, grandes camonistas como Américo da Costa Ramalho, Maria Helena da Rocha Pereira, Eduardo Lourenço, Aníbal Pinto de Castro, Martim de Albuquerque, Maria Vitalina Leal de Matos, Maria Lucília Gonçalves Pires, Helder Macedo e Vasco Graça Moura têm visto afirmarem-se como competentes e inovadores camonistas muitos estudiosos de gerações mais novas como Sebastião Tavares de Pinho, José Augusto Cardoso Bernardes, Carlos Ascenso André, Rita Marnoto, José Carlos Seabra Pereira, Luís de Oliveira e Silva, Maria do Céu Fraga, Hélio Alves, Isabel Almeida, Vanda Anastácio, Frederico Lourenço, João Figueiredo, Micaela Ramón, Helena Langrouva, Manuel Ferro e alguns outros. Talvez os estudos camonianos nunca tenham atraído tantos e tão dotados investigadores nas diversas Universidades portuguesas. E não posso deixar de mencionar o Brasil, pátria de admiráveis camonistas como Cleonice Berardinelli, Leodegário Amarante de Azevedo Filho, Maria Helena Ribeiro da Cunha e Gilberto Mendonça Teles, a cujo saber e a cuja dedicação a camonística fica a dever contributos fundamentais. Entre as gerações mais novas, menciono só, a título de exemplo, Sheila Moura Hue e Marcia Arruda Franco. Não quero alongar-me na citação de notáveis camonistas norte-americanos, espanhóis, italianos, etc., para não correr o risco de involuntárias omissões.

Os grandes desafios que se colocam a quem hoje se dispõe a estudar a obra de Camões são velhos desafios: a elaboração de uma edição crítica de Os Lusíadas e de uma edição crítica das Rimas. A edição crítica do poema épico não é hoje uma tarefa ciclópica, mas a edição crítica das Rimas é uma empresa temível. Fazem depois muita falta os bons comentários à obra de Camões. Em comparação com as modernas edições de Dante, Petrarca ou Ariosto, as edições de Camões são de uma pobreza proletária… No fundo, os grandes desafios são de ordem filológica e de ordem hermenêutica.

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